domingo, 16 de março de 2014

relato boémio

Eis que entro em casa: deparo-me com uma sagaz monotonia que, no escuro, me fustiga os olhos. O silêncio aconchegou-me, claro, mas deixou-me ao frio. Acabava a folia descontrolada e regressava à realidade da falta de descanso e das madrugadas mal dormidas. Pensei em acalmar o estômago e dar um descanso ao fígado com um pouco de chá; em simultâneo, tentava relembrar a noite que tinha passado e concluía que o meu organismo não tinha sido abusado em quaisquer termos. "Tranquilidade", pensava eu, "com os amigos que pudeste levar." Decidi, ao invés, cortar umas fatias de queijo fresco e comê-las depois de as polvilhar com algum sal - já não comia há coisa de 7 horas.
Sentei-me. Não, encostei-me ao balcão da cozinha. Via a desarrumação por mim criada ao longo de um dia despreocupadamente atarefado. Novamente, voltei a não prestar grande martírio ao que se erguia como um problema de espaço na bancada.
Eram qualquer coisa como 5 horas da manhã; não me lembrava da última vez que tinha olhado para o relógio, especialmente porque nunca mostrei grande importância a horários depois de chegar a uma combinação. Ocorreu-me que devia despir-me: [das sensações, dos risos, do calor] tirei as roupas, impregnadas com o cheiro de cigarros que haviam fumado para cima de mim. Vesti o pijama - ah, tremendo conforto que encontrava em peças de roupa de andar por casa -, mas continuava com reminiscências daquele passado recente, um possante hálito a cerveja ressequido nos meus lábios por não dar azo à minha fala há já uns tempos continuava a assombrar-me as vias nasais. Arrastei-me, mal me tendo nas pernas, para a minha escova de dentes e eliminei o que restava daquela noite. Deitei-me e juro ter ouvido um ou outro chilrear despropositado.
Julgando-me desapegado da vida boémia a que me tinha acostumado ainda agora, tornei para um e outro lado na almofada, suspirava, tirava as meias, puxava uma manta: não conseguia dormir; e isto era estritamente necessário, porque me esperavam algumas horas de atenção redobrada. Comecei, então, como remédio santo, a rebobinar. Julgo que o culminar da perfeição que se podia esperar de uma noite em honra de Luís de Camões só podia jorrar das cordas de um contrabaixo, numa dessas pouco iluminadas ruas da belíssima Lisboa.
Pensei em ignorar e continuar a minha marcha - como tantas vezes o faço durante a luz do dia -, porém, a luz [ou falta dela], aquele frio que me aquecia os ossos por não estar sozinho e estar com a melhor companhia e, muito provavelmente, as agoniantes dores nos músculos por desidratação fizeram-me parar por um pouco. Apenas ficámos, eu e a melhor companhia, a olhar o contrabaixista. Tocava como se não estivesse frio, como se não fossem 2 horas da matina, como se a vida devesse continuar com a total jovialidade e alegria - duas palavras praticamente sinónimas, queria eu - durante a noite. Deixámos-lhe umas moedas, acto ao qual sorriu e acenou levemente com a cabeça.
Visualizei a expressão do músico, imaginei-me a regressar à mão da melhor companhia e acabei a copiar o simples toque de simpatia do primeiro. Abri os olhos e voltei a fechá-los, simplesmente porque podia fazê-lo; disse adeus ao divertimento e encarcerei a felicidade que por aqui existia num compartimento algures, perto da glândula pineal, para a redescobrir quando toda a seriedade que a mim está reservada resolver passar - ou abrandar, talvez seja suficiente.

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