segunda-feira, 24 de março de 2014

tropeções intercontinentais

Dançar sozinho;
Morrer no chão.
Sinónimos do que podia temer
Ao hiperbolizar uma raiva interior.
Corro por entre as árvores,
Porque nas pedras definho;
Achei o meu ser
Caído, calado da dor.
Fico imóvel, para que me decores.
Com cores me acinzentaste
Como se não passasse de carvão,
De detritos dessa natureza suja!
Mas recuso-me a ir assim:
Não sou manjar de vermes.
Bandeira a meia-haste,
Que se perdeu o coração
Da alma - e ela que fuja! -
E eles que correram por mim
Até tropeçarem, caírem nas dermes.

domingo, 16 de março de 2014

relato boémio

Eis que entro em casa: deparo-me com uma sagaz monotonia que, no escuro, me fustiga os olhos. O silêncio aconchegou-me, claro, mas deixou-me ao frio. Acabava a folia descontrolada e regressava à realidade da falta de descanso e das madrugadas mal dormidas. Pensei em acalmar o estômago e dar um descanso ao fígado com um pouco de chá; em simultâneo, tentava relembrar a noite que tinha passado e concluía que o meu organismo não tinha sido abusado em quaisquer termos. "Tranquilidade", pensava eu, "com os amigos que pudeste levar." Decidi, ao invés, cortar umas fatias de queijo fresco e comê-las depois de as polvilhar com algum sal - já não comia há coisa de 7 horas.
Sentei-me. Não, encostei-me ao balcão da cozinha. Via a desarrumação por mim criada ao longo de um dia despreocupadamente atarefado. Novamente, voltei a não prestar grande martírio ao que se erguia como um problema de espaço na bancada.
Eram qualquer coisa como 5 horas da manhã; não me lembrava da última vez que tinha olhado para o relógio, especialmente porque nunca mostrei grande importância a horários depois de chegar a uma combinação. Ocorreu-me que devia despir-me: [das sensações, dos risos, do calor] tirei as roupas, impregnadas com o cheiro de cigarros que haviam fumado para cima de mim. Vesti o pijama - ah, tremendo conforto que encontrava em peças de roupa de andar por casa -, mas continuava com reminiscências daquele passado recente, um possante hálito a cerveja ressequido nos meus lábios por não dar azo à minha fala há já uns tempos continuava a assombrar-me as vias nasais. Arrastei-me, mal me tendo nas pernas, para a minha escova de dentes e eliminei o que restava daquela noite. Deitei-me e juro ter ouvido um ou outro chilrear despropositado.
Julgando-me desapegado da vida boémia a que me tinha acostumado ainda agora, tornei para um e outro lado na almofada, suspirava, tirava as meias, puxava uma manta: não conseguia dormir; e isto era estritamente necessário, porque me esperavam algumas horas de atenção redobrada. Comecei, então, como remédio santo, a rebobinar. Julgo que o culminar da perfeição que se podia esperar de uma noite em honra de Luís de Camões só podia jorrar das cordas de um contrabaixo, numa dessas pouco iluminadas ruas da belíssima Lisboa.
Pensei em ignorar e continuar a minha marcha - como tantas vezes o faço durante a luz do dia -, porém, a luz [ou falta dela], aquele frio que me aquecia os ossos por não estar sozinho e estar com a melhor companhia e, muito provavelmente, as agoniantes dores nos músculos por desidratação fizeram-me parar por um pouco. Apenas ficámos, eu e a melhor companhia, a olhar o contrabaixista. Tocava como se não estivesse frio, como se não fossem 2 horas da matina, como se a vida devesse continuar com a total jovialidade e alegria - duas palavras praticamente sinónimas, queria eu - durante a noite. Deixámos-lhe umas moedas, acto ao qual sorriu e acenou levemente com a cabeça.
Visualizei a expressão do músico, imaginei-me a regressar à mão da melhor companhia e acabei a copiar o simples toque de simpatia do primeiro. Abri os olhos e voltei a fechá-los, simplesmente porque podia fazê-lo; disse adeus ao divertimento e encarcerei a felicidade que por aqui existia num compartimento algures, perto da glândula pineal, para a redescobrir quando toda a seriedade que a mim está reservada resolver passar - ou abrandar, talvez seja suficiente.

segunda-feira, 10 de março de 2014

ladroagem dos estendais

Vulnerabilidade denunciada
Deixada cair pelos passos
Dados pelas falhas no passeio.
O chão desfaz-se em ti
Por pouco apreço demonstrares:
Cuspidelas na calçada
E corrosão dos espaços
Que calcas em eterno devaneio
Cada vez que sais daí.
Desenfriares
Da tua camisola de lã
- Permeável, como nós,
Às susceptibilidades exteriores.
Tentativa vã
De agarrar a voz
Dos inferiores
Que, sem dentes,
Insistem em roubar noz.

terça-feira, 4 de março de 2014

o anuário da jornada de Março

O que são anos
Quando temos dias?
Um ano perde-se
Em semanas e meses
Que um dia tem.
Quantidades pouco folgadas
Que fermentam em poços
Não finitos.
Tragam os panos!..
Que nos transbordam as vias!
- Quem, quem..?
Quem fará estas vezes
Ficar aquém
Das desenfriadas
Ideias de temores, nos calabouços
Que te afogam sem atritos?
Perdemos os nossos anos
À procura dos nossos dias.

cafetarias mal arrumadas

Gosto do cheiro do café. Não aprecio o seu sabor a nu, na frieza que a chávena torna sem o açúcar; mas apaixono-me pelo cheio do café cada vez que o sinto: cubano, colombiano, brasileiro: gosto bastante de café com açúcar, açúcar sul-americano.
Gosto que as conversas cessem quando a máquina está a moer os grãos; aquelas pancadas características para retirar o café usado e as duas levas de café em pó que a máquina tão dolosamente faz com que pareça caído do céu. E eis que, no meio de um qualquer estabelecimento com melhor ou pior ar, se ouvem as primeiras pingas de café, antes da onda de barulho que nos silencia os ouvidos.
O cheiro invade-me e rapidamente me abraça como conforto bruto e inerente a qualquer dos espaços onde desejaria estar ao beber aquela água excitante. Bebo café e sou atirado para uma cama a disparar 30 pensamentos por uma linha - o café acorda-me deitando-me -; o café reinicia todo um sistema de clamorosas falhas criadas e fomentadas por uma natural e irracional falta de descanso.
Uma máquina e tanto esse cérebro. Tenho uma máquina em mim e o combustível é o café.
Aqueles grãos têm um cheiro delicioso, perco-me no toque do que mal vejo.
Porém, todas as ilações que podemos tirar do café são um tanto monótonas e açambarcadoras de tempo precioso que inutilmente decidimos despender: o nível de queimadura e a quantidade que vem na chávena. Pouco ou nada nos surpreendemos, já que, num tão completo genoma quanto o que possuímos, já nós habituámos ao racio de novidade numa suma de acontecimentos largamente repetidos.
Gosto do cheiro do café. Gostar de café é quase tipicamente português.